Um réquiem para a Captura Críptica
A dialética da vida e da morte nos coloca a pensar sua curiosa ironia. Tão interligadas estão as suas facetas que uma não pode ser sem a outra… do caos da vida à eterna busca pulsional pela ordem anterior, somente alcançável ao fim. Assim sendo,requiem aeternam dona eis, Domine. O nascimento de mais um número desta Captura Críptica pode carregar em si um conflito tão silenciosamente violento, que a exposição do verbo aqui contido possivelmente não é suficiente a expressar as fatais contradições aí contidas.
No ciclo de manutenção de uma existência, a renovação se faz pressuposta, sem a qual resta apenas o inevitável declínio. Ilustra-se via simples metáfora do ato de respirar: sem o inspirar de um ar renovado não se sustenta uma vida, mas se o refugo não for expirado, também inexiste espaço para a novidade – atos que jamais ocorrem simultaneamente e, em tal harmônica sincronia, a dor da primeira respiração somente é anestesiada com a paz da última golfada. Na ausência do suporte para o passo seguinte da crítica, o ambiente da cúria posta em gradação decadente somente consegue se travestir com a aparente novidade que busca esconder a mesma pequena parcela garantidamente decrépita. Ao tentar eternizar um passado renovador, reproduz apenas a mesma e embolorada conservação – o novo permanece externo e o velho apodrece do lado de dentro; em uma concordância de números discordantes, o plural se faz singular.
O óbolo permanece nas mãos dos operadores dos mecanismos de acumulação. Se não pudermos arcar com a tarifa exigida pelo trânsito sobre as águas do Estige, melhor recorrer a Osíris para nos auxilie ao longo do Nilo e sem o auxílio de qualquer livro, encaramos os desafios no curso do Tuat. Trata-se do fardo carregado pela raça divinizada na origem como base de uma curiosa cultura, que há séculos mutila a mesma carne de seus antepassados ora escravizados e reúne, com o custo dessas vidas, o conforto aparentemente eterno. Somente Caronte seria capaz de aceitar tão vil pagamento de seus iguais. Da mesma forma contraditória, são aptos a encarar sacrifícios humanos a deuses alheios com o mais virtuoso dos choques – tão mais agradável imolar essas criaturas ao palpável ídolo dourado que simboliza o deus valor.
Nada disso altera o caminho que percorremos – simbiose passada e presente. Do nascimento do novo, somente a criatura latino-americana poderia, sem rosto, buscar romper a máscara, para expor nossa situação atual – nem Próspero, nem Calibã. É simultaneamente Martín Fierro e Macunaíma, ora na luta da linha de produção (carregando a transformação de suas condições, bem como a reprodução de sua situação), ora como desocupado, símbolo do silêncio que diz mais do que qualquer palavra e conserva em si uma explosiva potência revolucionária. Sem benção ou perdão, a marca deixada pelo p na crítica será constituída em um críptico epitáfio…
Palavras, nada mais do que palavras, serão somente palavras. A crise de uma manifestação escrita que percebe suas limitações e insiste nessa conflituosa permanência. Seria tão simples se o resultado apresentado não fosse fruto de uma fértil práxis, no contexto de um estéril ambiente, nas lutas contra o pior de todos os inimigos – aquele que não existe. Em meio a compromissos assumidos e não cumpridos, expectativas criadas e frustrações suportadas, algo foi feito para chegar a um resultado, isto é, ação e produto do trabalho. Nesse sentido, Captura Críptica é filha de mães e pais solteiras(os) em uma poligamia recíproca, com divórcios e relações extraconjugais, incapaz de ser descrita por qualquer criação moderna. Na discordância de números concordantes, o singular se faz plural.
Nesse(a) amálgama, o conjunto de diferenças enfraquece os laços e, em meio à enxurrada de experiências, a união amadurecida se torna mais rígida. Ao contrário do que verbaliza o filósofo niilista, aquilo que nos mata, faz-nos mais fortes. Quiçá, é no momento deste réquiem que temos mais força, afinal, no ponto em que a fênix irrompe, têm suas cinzas a possibilidade de origem de um novo ser… ou pode simplesmente definhar e apagar permanentemente, como fogo em palha. No entanto, a verificação se dará com o critério de verdade. Até então, pode-se saudar este hiato, sem coro ou a companhia de anjos, muito menos com uma recepção feita por mártires, pois não se deseja o paraíso moderno. Porém, se necessário, aeternam habeas requiem.
Os editores.